4 de março de 2009

A palavra do leitor - Mª Manuel Carvalhais



Apresentação do livro «O Poço», de Nuno Monteiro

ESMM, 4 de Março de 2009, 17h30

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«Eu tratei-o por tu, como colega de profissão, como um igual que me é, até no gosto pela escrita, embora desse não seja meu hábito, até hoje, dar notícia ao mundo sob forma impressa. Ele tratou-me por “a senhora”, interpondo entre nós um muro dos tais que, creio eu, na sua visão cinzenta e verde musgo do mundo, mantêm os humanos no poço…! Uma parede que fiz por ignorar, para salvar a sessão do monopólio monologado do autor e porque o meu universo se esboça com outros coloridos, graças à vontade férrea com que teimo em reparar e não esquecer o bom e o belo da existência.

O livro é uma torrente amarga de escrita, catártica para o autor – escrita que se substitui vantajosamente ao sofá do psicanalista – e onde o leitor que aprenda a fintar o débito corrosivo das frases nominais e se deixe embalar na cadência da sua repetição, poderá encontrar, também, o alívio de um caminho que não seja o da restituição do livro à prateleira, mas o da leitura que o conduzirá a uma África redentora.

Não sei se a concepção foi difícil, se o parto indolor. A leitura não é inócua, o que, num universo cada vez mais povoado de livros de leitura mastigada e já meio digerida, me parece bastante revigorante. Acabasse a prosa antes de desembocar na “Ala psiquiátrica” e poderíamos transcrever um final tão fecundo como este:

E agora não há Portugal, agora sou só eu e tu, África minha, mu­lher minha, frondosa fabulosa fruto de ventre tão cheia de ventre, olhos só olhos e toda a torrente toda a torrente de um pobre louco demente, toda a torrente de África dormente. Agora não há Portu­gal, agora não há bandeira, agora há a visão do Índico e fabulosos ilhéus, onde se cantam fogueiras e se ilustram poesias, onde silvam como perenes, sentidos de céu, céu azul de borrasca, céu azul de mi­lhões de pingos, grossos como uvas, doces como lábios, lábios como tu, tu minha África, tu minha torrente.

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Volto ao meu mundo que não é um poço. A literatura tem destes feitos extraordinários: cada qual pode ser personagem de múltiplas e diversas histórias. É dessa forma que eu – eu mesma – posso estar fora do poço e condoer-me da pobre de mim que dentro do dito se debate para manter à tona, seca e desenhada, a melena pintada de senhora.

Maria Manuel

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