20 de junho de 2010

______A Viagem do Elefante_____


Estava a acompanhar a despedida a José Saramago pela televisão. Fui à estante e peguei num livro dele, ao acaso. Era A viagem do elefante. Abri e li algumas passagens. Apeteceu-me escrever…

O 18 de Junho ficará gravado na minha memória como um dia de perda, de grande comoção e de profunda consternação… 2010 será para sempre o ano da morte de José Saramago.

O meu apreço por este romancista (de certa forma mais internacional do que português) não se deve ao facto de ele ter recebido, em 1998, um prémio, aliás O prémio – o Nobel da Literatura. Já era, antes disso, um grande “companheiro” na minha incursão pelo universo do romance e da palavra. Não conheço toda a sua obra, mas li todos os seus romances (tenho uma predilecção por este género!) e, se não posso afirmar que todos os enredos foram do meu agrado, estou convicta de que todos os comentários humanistas que colocou na boca dos seus narradores sobre a condição e a dignidade humana me fizeram reflectir, repensar, aprender, crescer… O livro que mais me marcou, e que marca o início de um registo alegórico do autor, foi Ensaio sobre a Cegueira. Seguem-se, na minha predilecção, Todos os Nomes, O Homem Duplicado, As intermitências da Morte. Como não produzirá mais, resta-me o consolo de ler ou reler o legado que nos deixou.

Nem sempre concordei com as suas afirmações. Considerei algumas provocadoras, mas sempre entrei em diálogo comigo mesmo (já que não me era possível entrar em diálogo com ele). O próprio Saramago reconhecia alguns excessos, mas afinal tudo se devia à liberdade criadora: “Não que fosse a intenção nossa, mas, já sabemos que, nestas coisas da escrita, não é raro que uma palavra puxe por outra só pelo bem que soam juntas, assim muitas vezes se sacrificando o respeito à leviandade, a ética à estética, se cabem num discurso como este tão solenes conceitos, e ainda por cima sem proveito para ninguém. Por essas e por outras é que, quase sem darmos por isso, vamos arranjando tantos inimigos na vida.” (A viagem do elefante, pp. 175-176).

Saramago gerou polémicas, nunca indiferença. Construiu uma nova forma de pontuar, um estilo inconfundível, subversivo, bem saramaguiano, cujo uso e compreensão só é possível para quem domina perfeitamente as regras convencionais da pontuação. Assumiu o seu ateísmo e as suas críticas acutilantes contra a Igreja, revelando-se um exímio conhecedor dos livros sagrados e um profundo defensor da dignidade humana, dos preceitos morais, dos direitos dos oprimidos…

Saramago foi, e continuará a ser pela força da sua obra, um Homem sem rodeios, com uma intransigência crua e perturbadora face às injustiças sociais e face ao poder, mas simultaneamente com uma tolerância e generosidade imensa face às fraquezas humanas. O próprio disse, numa entrevista: “Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas (Ensaio sobre a Cegueira). É um dos momentos mais belos que fiz até hoje”. Ora o cão das lágrimas representa, face à dureza do mundo, a imagem do animal humanizado pela generosidade e pela ternura. Senti-o muitas vezes como tal nas minhas leituras.

“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.” Só me resta desejar que, nesta sua viagem, se cumpra a epígrafe que ele escolheu para A viagem do elefante.

Estou certa de que Saramago continuará a chegar até nós através das suas palavras.

Até sempre.


Sem comentários: